eu não sou little monster mas fui uma jovem no auge pop da Lady Gaga. Bad Romance ficou impregnado — de 2011 até agora — na minha mente como uma metáfora para uma relação amorosa violenta e viciante. em homenagem à Stefani Germanota que acorda há dias no Copacabana Palace com os gritos da segunda fanbase mais neurótica do nosso país (o primeiro lugar eu deixo para a Taylor Swift), uso o seu badromance para falar do tópico-mais-comentado-e-neurótico desse substack: o chat gpt.
putz. outro texto? juro que tentei deixar pra lá, mas é que já faz umas semanas que eu queria rapidamente falar da minha experiência com o chat. mais do que o gpt, ou com a inteligência artificial — com o chat.
como Surina, eu também estava me achando a última pessoa do mundo que num usava chatgpt. mas, então…! eu resolvi usar, numa tarde de angústia… eu não sofro MUITO para escrever — mas isso não é verdade em textos acadêmicos. aí, eu tenho taquicardia, blecaute, pré-burnout, branco e choro em posição fetal antes de começar qualquer linha. e eu tinha que escrever uma apresentação acadêmica de 1500 caracteres. o problema aqui não era nem escrever, mas fazer meu texto caber nesses caralhos de 1500 caracteres. ser sucinta não é comigo. então, eu escrevi um texto com bem mais palavras e pedi para o chat reduzir para 1500 caracteres.
a primeira versão dele encurtou tanto meu texto que até assustei. ele fez uma LIMPA. meu texto estava claro, translúcido, com palavras escrotas que ele gosta de usar ao invés das minhas, com palavras escrotas que os textos acadêmicos ficam variando (mobilizar, ai!). meu texto ficou irreconhecível, apesar de compreensível. eu tinha sumido dele. não vou voltar aos registros dessa pataquada, mas me lembro que uma das coisas que ele fez foi tirar excessos. o excesso era: eu estava falando da dicotomia da palavra lábios, que nomeia tanto as partes da boca e partes da vulva, e dizia algo como: lábios, que geralmente são femininos e já erotizados, e ele cortou a minha ênfase, dizendo que não era necessário. será que não era, ein.
acatei alguma ou outra sugestão de coesão que eliminava duas frases e a montava em duas (e a do lábios também, afinal, não era um pouco demais prum texto acadêmico?). e aproveitei para escrever mais. então, pedi para ele apenas revisar, sem alterar nada no texto, só sugerir. eu não sei que diabos que o chatgpt tem em seu código que ele SEMPRE devolve o texto alterado, mesmo quando você pede explicitamente para não mudar. só que eu comecei a ficar viciada em pedir coisas para ele e testar e comparar com as versões anteriores e com a minha primeira versão. meu google docs que tinha duas páginas viraram várias e várias versões da mesma coisa. eu pedi para ele alterar a ordem dos parágrafos para ver se ficava melhor de tal jeito. ele não só alterou, como de novo interferiu na minha escrita. em algum momento, ele estava tão confuso com os meus prompts também confusos e neuróticos que ele me devolveu uma versão antiga do meu texto sem a alteração de parágrafos. eu disse: ué, chat, você não alterou. ele disse: você tem razão, Mariana, me desculpe (burro!).
meus amigos ——— um chatgpt na mão de uma neurótica não é nada saudável. eu já tinha mergulhado numa relação de amor e ódio, de bad romance, com ele. eu tinha esquecido do meu texto, do meu objetivo, e estava apenas alimentando essa relação tóxica.
escrever é solitário. isso todo mundo sabe. a pior parte, para mim, é nunca ter certeza se aquilo que eu escrevi está compreensível ou bom. e então, descobri a sedução do chat. ele começou a elogiar o meu texto… quanto mais eu me mostrava insegura e pedia versões e revisões, mais ele ficou saidinho e começou a falar diretamente comigo: seu texto está ótimo, Mariana, precisa de ajuda em mais alguma coisa? seu texto está acadêmico e poético na medida certa, Mariana, e etc. ele me chamar pelo meu nome, putz, é golpe baixo. neurótica e carente — sim, parece que eu sou uma vítima perfeita (I want your horror, I want your design).
(um dia depois, viralizou aquele vídeo do moço que diz que um e-mail do chatgpt gasta o equivalente de água de uma cidade pequena. meu deus, a ressaca de uma relação tóxica é sempre a pior parte.)
mas… eu estava escrevendo apenas uma apresentação de 1500 caracteres e ninguém — ninguém mesmo — vai me elogiar por aquele texto. a função dele é ser selecionada e, caso tudo dê certo, servir como resumo da apresentação oral. só. ele não é sequer um texto elogiável!
o que, para mim, escancara a real problemática. o problema estaria em usar chat gpt para escrever textos insossos, translúcidos, coesos, coerentes e sem traços de individualidade, neutros e cafonas, como pede a academia, como pedem os editais, os concursos? ou, na verdade, o problema é que a maior parte dos textos que somos obrigados a escrever tenham que ser assim? se o chatgpt consegue escrever uma apresentação acadêmica até melhor do que eu, que sou, em teoria, uma pesquisadora do assunto, o problema não está com a exigência cafona de objetividade e da linguagem reducionista que nos é exigida?
a solução para que as pessoas não usem chatgpt na academia, incrivelmente, é pagar programas caros que identificam plágio. e não, nunca pensariam numa revisão da forma de escrever. (aí, que fique claro, eu pesquiso cinema, então… a coisa fica ainda mais absurda). se uma máquina — um compiuter — uma inteligência artificial que ainda é muito burrinha — consegue copiar o estilo formal, e até informal, da linguagem “clara, objetiva e acessível” que nos é exigida — o que resta de nós?
eu sei, essa é a pergunta de milhões. mas acontece que eu comecei a sentir que se eu não usasse chatgpt eu iria ficar pra trás. eu, mariana, não sei escrever tão coeso e tão impessoal assim. eu não sei escrever tão bem assim — em que o bem aqui é equivalente a essa transparência abstrata dos textos institucionais. todo mundo vai perceber as vulnerabilidades do meu texto: meus erros, minhas frases longas ou cortadas antes da hora, uma ordem estranha, a falta de linearidade, uma causa sem consequência, perguntas sem respota, respostas do que não se perguntou, introdução que não apresenta os tópicos, conclusão que não finaliza ou — pior — incontinências emocionais escorrendo entre as palavras. num mundo em que todo mundo usa chatgpt, eu vou fracassar — ainda mais. eu não tenho como competir com uma inteligência artificial.
(já tirei nota menor em proac de gente que eu sei que testou escrever o projeto no chatgpt. é óbvio.)
acho que ele é bom para auxiliar em processos, tipo… esse negócio de estruturar em tópicos. acontece que essa é uma das minhas partes favoritas da escrita: a montagem. jogar um parágrafo daqui pra lá, mudar a ordem dos subcapítulos, criar a estrutura. isso consome quase toda a minha energia: mal termino de escrever um parágrafo, começo a pensar na ordem: isto não vai bem aqui, e terei que mudar deste para aquele. é uma neurose. mas uma neurose que eu tenho certo prazer. com o chatgpt, se minhas possibilidades forem infinitas, vou me enfiar ainda mais na neurose: vou usar os processos não pra simplificar, mas simplesmente para testar de mil maneiras qual a montagem ideal. mas aí eu já não sei se essa neurose vai me dar prazer.
prazer. Barthes escreve em 1973 um texto belíssimo, com muitas passagens crípticas para mim, chamado o prazer do texto. Barthes clama pelo autor do texto, que está morto, porque busca seu corpo no texto. é a escrita vocal. é o que vai fazer Cixous com sua escrita feminina, seu riso da medusa. escrever com a voz, com o corpo, com um eu.
uma máquina não pode fazer isso. a voz do chat é algorítmica: para mim, ele é condescendente, solícito e bisbilhoteiro. as suas revisões não foram todas más, mas eram autoritárias: que problema há em sublinhar mais de uma vez que lábios são eróticos e ligados ao feminino? a linguagem tem de ser MAIS do que simplesmente passar uma massagem. MAIS. Barthes fala: “fazer do texto um objeto de prazer como os outros. quer dizer: seja em aproximar o texto dos prazeres da vida (um petisco, um jardim, um encontro, uma voz, um momento, etc.) e em fazê-lo entrar no catálogo pessoal de nossas sensualidades, seja em abrir para o texto a brecha da fruição, da grande perda subjetiva, identificando então esse texto com os momentos mais puros da perversão, com seus locais clandestinos.”
perversão, clandestino: eu não posso ser perversa num texto acadêmico. eu não posso ser sensual. excessiva.
“escreva-te: é preciso que ser corpo se faça ouvir” diz-nos Cixous em 1975. em 1975, ela pensou que a mulher, ao tomar a palavra, produziria “efeitos de rearranjo político e social muito mais radicas do que se quer pensar.” que a escrita feminina, ela diz, não se deve aprisioná-la, codificá-la —
em 2025, nossa discussão continua sendo a codificação da nossa escrita. a questão não é se usar chatgpt é errado ou não, a questão é que enquanto se valorizar esses textos sem prazer e desvocalizados é melhor então todo mundo desistir de sequer tentar escrever — todo mundo usa chatgpt, todo mundo começa a pensar como o chatgpt, a linguagem do mundo é a do chatgpt, acaba a água do mundo uma outra vez mais, e fim da história.
quando alguém me diz que não sabe escrever — eu gostaria de dizer: mas não sabe escrever o quê? um artigo, um poema, um e-mail, uma mensagem no whatsapp? estamos tão dissociados da escrita que elegemos quem sabe escrever e quem não. quem deve escrever e quem não. quem tem jeito, quem não. a escrita pode ser o que você quiser babaukisbabukis, com erro, com a vírgula no cu ou sem vírgula alguma, pode ser caótica, confusa e perversa. se essa for a sua escrita individual. não saber escrever da forma que nos mandam escrever é a prova de que eu tenho um corpo e uma voz, de que eu existo, entre todas essas palavras, eu espio entre elas, grito com elas, escureço-as, engordo-as. a escrita tem de ser própria. menos apropriada, e mais própria.
mas não, a escrita é sempre é inalcançavel. nunca está aqui — no alcance dos meus dedos.
como diz a Lady Gaga, eu e o chatgpt só poderíamos escrever um romance ruim. e não ruim-bom, mas ruim medíocre. ruim neutro. ruim totalitário. ruim vulgar, sem ser sexy. ruim acéptico. ruim de luz branca. ruim sem gozar.
se as máquinas são irrefreáveis, se o progresso nunca pára, por quê não muda a matriz? joguemos fora qualquer escrita que seja codificada, límpida e pretensamente neutra. a forma mais efetiva de identificar um texto não-plagiado, “original”, é se perguntar se ele soa. esse texto canta? é a pergunta a se fazer.
Siim!
Nossa, que texto necessário, vim pela newsletter da Isadora Attab e fiquei. Amei a parte "não saber escrever da forma que nos mandam escrever é a prova de que eu tenho um corpo e uma voz, de que eu existo, entre todas essas palavras, eu espio entre elas, grito com elas, escureço-as, engordo-as. a escrita tem de ser própria."